Por Mayrlla Motta*
O ano é 2024 e a busca desenfreada por likes e engajamento tem levado pessoas adultas a compartilhar a vida em redes sociais sem nenhum tipo de filtro. Viralizar muitas vezes é a única recompensa que a pessoa quer receber com a esperança de horas de fama. Em meio a esses compartilhamentos de rotinas, viagens e vida social, pode ter um coadjuvante na história, que sem proteção devida pode se tornar uma vítima: criança.
A pandemia ocasionada pela Covid 19 alterou completamente o modo de viver de famílias em todo o mundo, onde as redes sociais, jogos e outras atividades online foram utilizadas para suprir a lacuna que a vida social havia deixado. Além do comportamento no trabalho, onde os pais passaram a trabalhar no regime home office. Com tais mudanças, muitas trends chegaram a fazer sucesso e creators nativos surgiram na mídia do entretenimento.
Nessas trends são usados hits musicais em alta, que muitas vezes contém conotação sexual não só nas letras, mas nas coreografias. Os pais por sua vez, não se atentam e acabam compartilhando nas redes takes da criança dançando um hit que é inapropriado para a idade, expondo o menor à uma situação perigosa.
No ano de 2021, o aplicativo TikTok, por exemplo, atingiu a marca de 37,3 milhões de usuários. Nos EUA, 25% daqueles usuários tinham entre 10 e 19 anos (2). Atualmente, o Brasil ocupa o terceiro lugar no pódio com mais usuários do TikTok em todo o mundo, com 98,6 milhões, ficando atrás apenas dos EUA (140 milhões) e Indonésia (123,8 milhões), segundo os dados divulgados pela Data Reportal em 2024 (3).
OS PERIGOS DE UMA SELFIE
O compartilhamento desenfreado de fotos e vídeos de crianças nas mídias sociais pode levá-las a riscos que, muitas vezes, os pais não enxergam. Mas um cibercriminoso vê como uma oportunidade. O Estatuto da Criança e do Adolescente dispõe que a privacidade é um dos direitos dos pequenos (1), sendo assim, devem ser preservados a intimidade e o direito de imagem deles.
Recentemente viralizou nas redes um vídeo feito com Inteligência Artificial de um bebê nascendo já com um celular à mão com a conotação de que “crianças já nascem conectadas”. O especialista em Cibersegurança, Leonardo La Rosa comenta que atualmente isso é uma realidade. “As crianças começam a utilizar dispositivos com acesso à internet, como smartphones, tablets e notebooks, cada vez mais cedo. Isso aumenta ainda mais a exposição, pois muitas delas assistem a vídeos de outros jovens influenciadores digitais. Como resultado, vemos crianças gravando e publicando conteúdo online sem nenhuma precaução quanto à privacidade ou consciência sobre o que estão expondo ao público”, diz.
O compartilhamento desses conteúdos sem um filtro pode levar à exposição de informações pessoais como endereço e telefones. Uma cena comum nas redes é o início do ano letivo. Pais e mães compartilham as fotos de suas crianças fardadas como uma forma de mostrar a nova fase da criança. O alerta acende quando essa postagem é feita de forma pública, sem o mínimo de controle para quem está acessando ou vendo esse post, sendo assim uma exposição desnecessária que pode trazer riscos à intimidade e à segurança da criança, visto que uma pessoa mal intencionada pode saber onde ela estuda e os danos podem vir a ser maiores que 50 curtidas.
ATENÇÃO AO QUE COMPARTILHA
A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) defende no Guia Prático de Atualização que pais e responsáveis devem ser referências para os filhos. Nesta publicação, com foco em médicos pediatras, o Guia reforça a importância da mediação parental para que o uso de redes e telas sejam seguros, instruindo os leitores sobre alfabetização digital (4).
Neste mesmo documento, a SBP elenca as Formas de Violência e Abusos Online para pais e responsáveis terem ciência dos riscos associados à exposição dos menores. Dentre eles destacamos o “Sharenting”. Esse é termo usado para “fotos ou imagens de crianças com nomes ou dados de identificação que são colocadas por seus pais ou qualquer pessoa, muitas vezes sem a intenção de abuso, mas que vão sendo compartilhadas publicamente por falta dos critérios de segurança e privacidade nas redes sociais, e se tornam elementos distorcidos e transformados por predadores em crimes de violência e abusos nas redes internacionais de pedofilia ou pornografia”, explica o Guia da entidade.
A exemplo disso, no ano de 2023 estreou nos Cinemas o filme “O Som da Liberdade”, um drama baseado na história real de Tim Ballard, ex-agente do governo americano. Ele cumpre no filme uma missão de resgate de crianças vítimas de tráfico sexual na Colômbia. Dentro da trama há um personagem, um pedófilo que possuía um acervo digital com inúmeras imagens de crianças, como se fosse uma coleção.
O especialista Leonardo La Rosa concorda que essa falta de cuidado atrai a atenção de predadores sexuais. Ele ilustra uma cena: imagine sua família na praia, ao entardecer. O pai ou a mãe abre o App da câmera e registra o momento da criança de biquine e publica nas redes. “Uma foto de uma criança na praia ao entardecer pode parecer inocente para os familiares, mas também pode chamar a atenção de indivíduos que compartilham material infantil online. Uma vez publicado, o conteúdo pode ser utilizado de diversas formas, dependendo do interesse de quem o compartilha. Assim como uma foto de um adulto em trajes de banho pode despertar a atenção de outras pessoas, imagens de crianças nessas mesmas circunstâncias também podem atrair predadores.”
Segundo ele, é comum encontrar em vídeos do YouTube comentários que indicam horários específicos para outros usuários com as mesmas intenções maliciosas, destacando momentos em que as crianças aparecem em poses ou situações que possam atrair a atenção.
Alguns exemplos de como esses comentários podem ser feitos incluem:
– **Simples**: “Veja 05:34” ou “05:34 importante.”
– **Combinado com Emojis**: “03:21 ⏰” ou “07:12 🚨.”
– **Forma de URL**: “Assista este link: youtu.be/XXXX?t=321.”
Leonardo reforça que esses predadores também aprendem com o comportamento das crianças e, muitas vezes, um aplicativo aparentemente inofensivo pode conter conteúdo malicioso. Portanto, a vigilância constante e a educação sobre o uso seguro da internet são essenciais para proteger as crianças.
NA CONTRAMÃO
Um exemplo famoso de proteção de imagem é da cantora Sandy que não compartilha e expõe fotos de seu filho Theo. Desde o nascimento da criança, há 9 anos, até hoje não há nenhuma imagem divulgada na internet ou redes sociais.
Semelhante a ela e na contramão do sistema de compartilhamentos desenfreados de fotos e vídeos, o fotográfo e psicanalista Larrion Nascimento, pai de dois meninos, não compartilha nas redes sociais imagens que mostrem os rostos dos filhos. Ele explica que essa decisão, em comum acordo com a esposa, a doula e jornalista, Natália Caplan, é pela privacidade da criança. Ele conta que há anos compartilha do assunto no canal do Youtube dele sobre os riscos dessa exposição.
“Não sabemos se alguma fotografia ou vídeo pode viralizar em forma de meme. E isso acabar prejudicando futuramente a vida de nossos filhos. Podendo causar constrangimento tanto no período escolar quanto na fase adulta. Outra questão é possíveis abusos do uso de imagens. Já saiu em reportagens, que pedófilos vendem e compartilham fotos, acabam pegando fotografias e vídeos que foram expostos na internet para complementar e variar o seu catálogo de imagens. Sem contar com a Inteligência Artificial que pode dar movimento ao rosto do seu filho e só Deus sabe o que podem fazer com isso” compartilha.
Você deve perguntar: mas então eles não compartilham nenhuma foto das crianças? Nem com os mais próximos? Como fotógrafo Larrion destaca como os ângulos podem fazer total diferença. Não é preciso necessariamente fotografar o rosto da criança, é possível utilizar o olhar e ainda assim obter um clique que não exponha a criança. “Quando postamos algo na internet, geralmente eles estão longe, de costas, ou uma mão, um pé… é usar a perspectiva fotográfica para poder sair uma foto bonita e ao mesmo tempo, sem expor nossos filhos”, explica.
Segundo dados do boletim epidemiológico do Ministério da Saúde, divulgado em 2023, familiares e conhecidos são responsáveis por 68% dos casos de violência sexual contra crianças de 0 a 9 anos no Brasil. Entre as vítimas de 10 a 19 anos, o crime é cometido por pessoas próximas em 58,4% dos casos (4).
Tendo essa estatística como exemplo, Larrion comenta que o cuidado quanto à exposição dos filhos é redobrada. Imagens são divulgadas apenas em um grupo familiar no WhatsApp e de modo muito restrito com amigos ou familiares muito próximos. E essa decisão é aberta para que todos de convívio social saibam para que essa regra familiar não seja quebrada.
O psicanalista conta que mesmo assim, recentemente, após o nascimento do segundo filho, uma familiar “vazou” uma foto do bebê mesmo sabendo claramente da decisão dos pais. “Se você desde o início mostrar que dentro da sua casa tem regras, as pessoas têm mais cautela. Mas às vezes ultrapassam o limite. Mas no nosso caso, toda família tem aqueles membros que respeitam qualquer decisão e por outro lado tem aqueles que acham que nós estamos sendo radicais, ficam tentando burlar ou mandar indiretas. Recentemente nasceu meu segundo filho e uma determinada parente postou uma fotografia que havia colocado no grupo do WhatsApp na internet do nosso bebê mesmo sabendo que nós somos muito enfáticos com relação a isso. Infelizmente eu tive que repreender de uma forma mais ríspida, este familiar e pedi pra retirar a fotografia. Pois houve uma invasão de nossa privacidade”, conta Larrion.
Para pais e familiares que estão em busca de proteger seus filhos digitalmente, o fotógrafo elenca 5 dicas:
-Apague ou oculte todas as fotos de suas redes sociais. Eu sempre falo isso. Inclusive já perdi a conta de quantas vezes vi redes de amigos ou conhecidos, com foto de ex namorado(a) no meio das milhares que postou e nem sabe. São muitas coisas no “baú” da internet que podem ser arriscadas. Então faça uma curadoria e pense se determinadas fotos devem ou não estar expostas na internet.
– Inclusive, existe para as grávidas a regra dos 3 meses pra contar que está grávida, é muito incômodo ficar postando isso e depois acontecer algo e as pessoas futuramente ficarem perguntando. Nós postamos o nascimento do nosso filho, ele aparece de costas, com uma perspectiva que dá pra ver que é um bebê, mas não consegue ver o bebê em si. Quem tiver interesse que venha falar com você e pedir a foto. Isso é bem interessante.
– Evite até postar viagens, enquanto estiver viajando ou fotos de dentro da sua casa, ou vídeos, ultimamente bandidos estão monitorando as redes para saber que casas estão vazias. Hoje todo mundo quer ser “explorador”, mostrar que conhece lugares desconhecidos e que viajam muito. Estão mais preocupados em expor ao mundo que nem tem interesse na sua vida, do que você aproveitar o lugar. Eu vou em lugares turísticos e as pessoas passam 5 minutos tirando foto e vão embora. Nem aproveitam o ambiente. Curta a viagem. Quando voltar, selecione uma foto ou outra e poste. E evite postar o rosto dos seus filhos.
-Não deixe seus filhos usarem celular também. Isso já foi comprovado cientificamente que é perigoso e arriscado. Todo dia surgem histórias de pedófilos falando com crianças na internet, sem contar com os problemas psíquicos do uso do celular.
-Imprima as fotos que você tem em casa. Eu amo imprimir fotos. Tem fotos que ninguém nem lembra que tem ou até perde devido a ficar guardado na nuvem ou num HD. É muito legal sentar e recordar, manusear a foto com as mãos. Meu filho de 2 anos fica pedindo pra ver as fotos que tenho impressas. Eu deixo ele manusear e até rasgar as vezes pra aprender a ter mais cuidado. Hoje pra imprimir é tão barato. E coloque as fotos na parede da sua casa. E faça como se estivesse num museu, pare e recorde aqueles momentos que estão na parede.
A fama não deve vir antes da Segurança
A privacidade dos filhos é uma responsabilidade dos pais, que devem estar atentos aos riscos que a exposição nas redes sociais pode trazer. A busca pela fama e engajamento não deve comprometer a segurança e o bem-estar das crianças. É essencial adotar medidas de proteção, como controlar o compartilhamento de fotos, utilizar senhas fortes e ferramentas de segurança, e comunicar claramente as regras familiares aos amigos e parentes.
Para saber mais sobre como proteger seus filhos e familiares e oferecer educação em segurança digital recomendo aos leitores o “Seguro na Internet’, um treinamento da Acadi-TI para pais, filhos e avós aprenderem como se proteger de crimes digitais e golpes.
*Mayrlla Motta é jornalista amazonense há 7 anos, com pós-graduação em Marketing e Neuromarketing. Escreve sobre Cultura, Saúde, Bem-estar e agora Segurança Digital neste blog com textos publicados às segundas, terças e quintas.
- https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm
- https://definicao.marketing/tiktok/estatisticas-tiktok/
- https://datareportal.com/reports/digital-2024-brazil
- https://www.cnnbrasil.com.br/saude/familiares-e-conhecidos-sao-responsaveis-por-68-dos-casos-de-violencia-sexual-contra-criancas-no-brasil-diz-saude/#:~:text=00%201.0x-,Familiares%20e%20conhecidos%20s%C3%A3o%20respons%C3%A1veis%20por%2068%25%20dos%20casos%20de,sexual%20contra%20crian%C3%A7as%20e%20adolescentes.